Da Zero Hora, Porto Alegre-RS
Cebolinha e Cascão talvez não soubessem, mas, a cada vez que um de seus "infalíveis" planos para roubar o coelho Sansão era frustrado, o criador da dupla de amigos e da enérgica Mônica avançava outro passo para se tornar o maior criador de histórias em quadrinhos do país.
Quando concebeu seu primeiro personagem, o cãozinho Bidu, em 1959,Mauricio de Sousa precisava conciliar a carreira de quadrinista com suas tarefas de repórter policial do jornal paulistano Folha da Manhã. Hoje, o desenhista detém 80% do mercado infantojuvenil de Bancas, e suas criações estão presentes em desenhos animados, filmes e rótulos de diferentes produtos.
O pai da Mônica esteve no mês passado em Porto Alegre participando da 60ª Feira do Livro, evento no qual realizou uma sessão de autógrafos que durou mais de três horas. Aos 79 anos, ainda teve fôlego para receber Zero Hora com exclusividade para esta entrevista, na qual discutiu as dificuldades e alegrias de ser um artista brasileiro e expôs alguns de seus planos para o futuro – tudo com a vitalidade de quem parece estar recém-começando.
O senhor veio a Porto Alegre para lançar um álbum comemorativo aos 50 anos da persongem Magali. Qual foi a inspiração para essa que é uma de suas criações mais reconhecidas?
A Magali não rejeita um bom prato, é alegre, sempre de bem com a vida. Ela tem muito a ver com minha filha Magali, que é permanentemente festiva e muito brincalhona. Foi em cima das características dela que, muitos anos atrás, criei a personagem. Era um tempo em que estava precisando de personagens femininos. É preciso lembrar que, quando ela apareceu, o grupo não se chamava Turma da Mônica, e sim Turma do Cebolinha – ele havia sido criado antes e mandava na história. A Magali dos quadrinhos nasceu na mesma época da Mônica, também inspirada em uma das minhas filhas. Na vida real, Magali tinha um ano e meio, e Mônica tinha dois anos e meio.
Mas foi a Mônica que se destacou na turma.
Sim, a Mônica apareceu e roubou a cena com seu temperamento forte. No entanto, entre os leitores, Magali tem tanta força quanto ela. Mônica é mais lembrada, mais forte, mas Magali é mais carinhosa. Em qualquer lugar, se perguntarem que personagem as crianças querem que eu desenhe, as duas vão ter o mesmo número de pedidos.
Além dos livros e revistas, seus personagens estão em diversos empreendimentos e produtos comerciais. O senhor imaginava que poderiam alcançar tanto sucesso?
Não. Na minha vida inteira, evitei trabalhar com futurologia, porque, se a expectativa não fosse cumprida, ficaria frustrado. Mas desde sempre eu queria fazer exatamente isso que faço. Já era meu desejo criar histórias em quadrinhos, desenhos animados, parques temáticos, merchandising, tudo antes de construir esses personagens que construí. A única coisa que não planejei há 50 anos foi a internet, já que não havia como adivinhar que ela viria. Mesmo assim, em cima das histórias da época, intuí que viria uma tecnologia que transformaria tudo.
As histórias em quadrinhos anteviram aspectos da sociedade atual?
Sim. Vi os primeiros sinais disso nas histórias de Alex Raymond (1909 – 1956), criador do Flash Gordon. Ali havia de tudo: televisão, minissaia, viagem interplanetária. As HQs anteviram muitas coisas que aconteceram, estão acontecendo e acontecerão em diferentes campos: tecnologia, relações humanas, aspectos sociais. E até coisas mais trágicas, como o fim do mundo, a crise da falta de água e o desmatamento. Nas nossas histórias, fomos sempre muito suaves nas tomadas de posição, mas há 50 anos Chico Bento já falava em ecologia, na importância do cuidado com a natureza, que hoje é um dos temas da hora.
Quais foram as maiores dificuldades para desenvolver esses temas?
Às vezes, é preciso ter cuidado com as respostas, pois, quando você pergunta isso, a primeira coisa que vem à mente é "puxa vida, se eu não estivesse no Brasil, conseguiria tudo com mais facilidade". Mas não posso me queixar: consigo fazer muitas coisas aqui, mesmo vivendo em um lugar em que há tantos obstáculos. Agora, uma grande frustração é que tenho os melhores personagens, cerca de 2,5 mil produtos em linha permanentemente e, no entanto, estou impedido de exportar esse material para alegrar a criançada no Exterior por causa do Custo Brasil. Vários países, organizações, lojas e distribuidoras nos procuram, mas não podemos atendê-los porque esbarramos em um sistema que não está preparado. Isso talvez nos levará a uma situação que eu desejaria que não chegasse: vamos precisar fabricar no Exterior e exportar para o Brasil a Turma da Mônica em produtos de outros países.
Um grande desafio parece ser o dos parques temáticos. O Parque da Mônica foi fechado em 2010, deixando dívidas de R$ 40 milhões. Por que isso ocorre?
Ainda não existem brinquedos de tecnologia sofisticada no Brasil, e por isso é necessário importar. Aí, de novo, o fantasma do Custo Brasil chega – fica pesado, a conta não fecha, então não dá para fazer parque temático no Brasil. Não quero mais ser dono de parques temáticos. Isso é uma coisa para grandes investidores, grandes grupos que podem trabalhar com o que eu crio. O que estou fazendo, neste momento, é a busca para fechar negócios com essa fórmula: posso criar tudo, dar cobertura, alimentar um parque inteiro com elementos e temas, personagens e o que for, mas minha atividade propriamente dita deve ser cada vez mais focada na criação de conteúdo. Só. Para o restante, é preciso investidores. No cinema, ocorre o mesmo: estamos negociando com organizações que mexem com isso no mundo todo. No que diz respeito aos parques, a coisa ainda está mais devagar, não temos grandes investidores. Mas essas novas fórmulas irão sair do papel. Enquanto não saem, estamos investindo em desenhos animados para a televisão, que não é um mercado tão pesado em termos de custos.
Na sua opinião, o Estado deveria apoiar empreendimentos como esses?
Não. Não devemos contar com o Estado, nem no Brasil, nem em outros lugares do mundo. O único país em que o Estado, em alguns momentos, foi decisivo, muito forte e ajudou bastante foi o Japão. Lá, o governo torce, investe, faz com que os mangás sejam um produto de exportação maravilhoso. Mas, mesmo assim, há crises. Não crises do sistema, mas de excesso de artistas, ideias e personagens. Eles fazem muito e, sempre que há excesso, alguém sofre. Sem dúvida, em algum momento, nossos produtos também estarão no Japão. Estou abrindo um sistema para poder trabalhar com maior liberdade em vários países, promovendo nossas criações em escala mundial. No Brasil, já temos mais de 80% do mercado de publicações infantojuvenis (de histórias em quadrinhos). Sem megalomania, vamos buscar a expansão, devagarinho, fazendo o que dá. Sou jovem e tenho muito tempo de vida pela frente. Acho que poderemos brincar bastante (risos).
Na hora de criar histórias e personagens, como você faz para se comunicar com públicos de diferentes idades e lugares?
É preciso focar uma área do público e ir em direção a essa faixa. Eventualmente, nas beiradas há um pessoal que, por aproximação, também pode gostar. O ideal é que o conteúdo, o texto e a ideia sejam bons. E que você respeite o leitor, mas jogue a mensagem com uma linguagem fácil, transparente. Se você fizer isso, pegará público sempre. Para facilitar um pouco a vida, eu tinha as histórias infantis, que fizeram o maior sucesso, mas, em algum momento, estrategicamente tive de criar um produto para os jovens, porque a criançada estava largando minha revista com 10 ou 12 anos achando que "era coisa de criança". E aí eles iam ler mangá japonês. Então, resolvi criar o mangá caboclo, que é a Turma da Mônica Jovem. Fiz esse trabalho nos mesmos moldes físicos dos mangás japoneses e, hoje, a Turma da Mônica Jovem se tornou a nossa revista de maior sucesso.
Depois dessa incursão junto aos jovens, qual é o próximo desafio da Turma da Mônica?
Já que estamos na adequação de gostos e estilos, estou pensando na Turma da Mônica Adulta, que vai nos dar um trabalho danado e assusta o pessoal do meu estúdio. Sei que vou me arrepender desse negócio, mas já comecei o trabalho (risos). Preciso de mais uns três anos para começar a colocar no papel. É bastante tempo, mas é assim. A Turma da Mônica Jovem demorou uns cinco anos para ser lançada. Demorou para que eu convencesse o pessoal do estúdio de que era possível, viável. Lá, cada desenhista se sente um pouco dono da turma, então todos ficam assim meio "Ih, meu Deus, vamos mexer? Por que mexer em time que está ganhando?". Mas precisamos mexer! É questão de maturação da proposta editorial. Na medida em que o tempo passa, os gostos se alteram e a vida também muda. Precisamos estar prontos para as mudanças, fazer parte delas, estar dentro delas.
Em 2009, uma de suas publicações para jovens, a revista Tina, causou repercussão ao sugerir que o personagem Caio fosse homossexual. Como é lidar com os temas tabu?
Quando o Caio surgiu, houve uma grita por parte do público: "Que pecado, que isso, que aquilo...". Há, ainda, muito preconceito quando se trata de propostas ligadas a qualquer coisa sobre a sexualidade. Como nossas histórias alcançam crianças, quem compra as revistas são os pais delas, que geralmente são mais conservadores do que os filhos, ou mesmo os mais jovens. Então, realmente, tenho que ter cuidados. Falo para meu pessoal de criação e roteiristas que a Turma da Mônica não deve levantar bandeiras, que essa não é a proposta das nossas revistas. Se as bandeiras estiverem mais consolidadas, podemos voltar a tocá-las, mas fazemos tudo no seu tempo.
Esse perfil que o senhor descreve para a Turma da Mônica é bastante diferente, por exemplo, da personagem Mafalda, do argentino Quino, que também já passou dos 50 anos.
Sim, é totalmente diferente. A Mafalda faz críticas contundentes, é uma personagem política. Já a Turma da Mônica brinca e faz algumas críticas veladas em alguns assuntos. Gosto mais do Quino como chargista do que como quadrinista. Como chargista, acho ele um dos melhores do mundo. Somos amigos, ele já foi ao meu estúdio duas vezes para ver como criamos as coisas, como tudo funciona lá. A Mafalda é um exemplo de como os quadrinhos, aparentemente infantis, podem mexer nas vísceras de um sistema.
O senhor nunca buscou a mesma contundência?
Desse modo, nunca busquei. Seria perigoso para a sobrevivência do meu estúdio. Fomos suaves. Em alguns momentos, como no período da ditadura militar, fizemos algumas parábolas, historinhas que o leitor poderia entender de outra maneira. O Astronauta, por exemplo, tem uma história em que vai a um planeta onde cantar é proibido e dá cana. Ele é preso por chegar lá assoviando e encontra um rapaz na cadeia, preso por gostar de música, tocar guitarra e cantar. O Astronauta descobre que o garoto é da família do dono do planeta, mostrando que a perseguição não tinha cor nem razão, não fazendo distinção na hora de prender e castigar. Isso foi no tempo do Figueiredo. Já no tempo do Geisel, fiz a Turma da Mata, na qual o Rei Leonino vigia toda a comunicação e a única coisa que lhe escapa são as histórias em quadrinhos, então ele resolve que quer vê-las antes de serem publicadas e manda trazer o desenhista, um sujeito parecido comigo. Ele chega com sua equipe, arruma um lugar para todos trabalharem e, com isso, mostro como são feitas as HQs (veja as tiras na página anterior). Mas também faço uma sugestão de como o controle acontecia no regime: não é o rei que precisa ver as tiras. Há um local obscuro do castelo em que o ministro entrega os desenhos para uma turma que fica ali oculta, em escuridão completa. São os censores, ou as eminências pardas, o pessoal que manda de verdade, dizendo se deve sair ou não.
Isso não lhe rendeu problemas?
Por incrível que pareça, não. Fiquei esperando os censores passarem pelo estúdio para me dar susto, mas não houve nenhum problema. Recentemente, conheci por outros motivos um sujeito que fora secretário do Golbery do Couto e Silva, tachado como o articulador dos destinos da ditadura. Quando ele me contou que era secretário, perguntei: "Me mata uma curiosidade: vocês nunca viram tal e tal história que eu fazia? Nunca houve nada comigo". Ele me disse: "É lógico que a gente via, mas era uma história em quadrinhos, com personagens infantis. Já estava uma pressão danada sobre o governo, era preciso haver alguma pequena válvula de escape. A gente achava que aquilo não era tão perigoso a ponto de inflamar a população. Assim, você acabou se safando".
O senhor disse anteriormente que tem um dos maiores merchandisings infantis do Brasil. Uma das críticas a esse tipo de publicidade é que ela estimula o consumo em crianças.
Tomara que estimule bastante o consumo, porque os produtos são bons, a mensagem é legal, está movimentando a economia, dando emprego para uma porção de gente. Cerca de 30 mil pessoas trabalham na produção dos nossos artigos dentro de diversas indústrias. Somos invadidos por empresas do mundo inteiro porque deixamos esse vazio. Estão tramitando projetos em Brasília para proibir publicidade infantil, uso de personagens nos rótulos... Imagina: a embalagem de uma boneca não poderá ter a imagem da própria boneca! São coisas tão absurdas que não dá para compreender. Não dá para aceitar que deputados e senadores estejam perdendo tempo em um país com tantos problemas sérios, com proibições em uma área de produção que poderia nos tornar exportadores de conteúdo para o Japão e a China. Se o Brasil tivesse facilidades na produção e na exportação, logo poderia estar brigando com esses dois países, mas sucatearam as indústrias. São heróis aqueles que seguem produzindo e investindo no Brasil.
Mas a crítica é que as crianças não sabem diferenciar o que elas vêm na publicidade do que é a realidade, fazendo com que consumam sem o mesmo discernimento dos adultos.
Antes mesmo das gritas atuais, eu já não fazia publicidade agressiva. Sempre tive o maior cuidado do mundo. Além disso, há uma legislação atual para podar e tomar providências sobre abusos. Mas há um pessoal que acha que o Estado deve substituir os pais no cuidado com as crianças. O que estão tentando fazer é puxar o pátrio poder para o Estado. Pensa: o Estado cuidar do que as crianças podem ou não fazer. Isso dará um bode danado, vai prejudicar muito essa criançada que não vai ter como brincar, como optar por um brinquedo, como discutir um desejo. Estão ignorando os pais como grandes exemplos para as crianças. Isso é desonesto com pais e mães.
Em abril, o senhor compartilhou em seu perfil no Instagram uma foto de uma menina que segurava uma cartaz com a frase "Eu tenho direito de assistir à publicidade infantil". Depois de receber muitas críticas, a foto foi excluída. Por que a decisão de retirá-la?
Se eu não a retirasse, seria linchado. Eu não fiz a foto, apenas a publiquei. A menina tem apenas 12 anos, mas é muito bem informada, fazia propaganda para a televisão. Ela e dezenas de crianças perderam trabalhos na TV por conta dessa grita toda. Alguns desses atores-mirins tinham papel importante para sustentar famílias mais simples. Foram os primeiros a perder por conta dessa onda toda contra a participação da crianças na publicidade. A retirada da foto não representa uma mudança de opinião minha; apenas pensei em proteger a menina.
Suas histórias infantis permancem usando elementos de um Brasil mais pitoresco, das crianças brincando no campinho enquanto as mães preparam bolos e os deixam esfriar nas janelas. Como seguir reproduzindo esse cenário para leitores que crescem cada vez mais imersos em um ambiente povoado de tecnologia?
Eu misturo tudo isso. Se você percorrer esse Brasil, vai encontrar crianças brincando do mesmo modo que o Chico Bento, o Cebolinha e o Cascão. E também encontrará um monte de garotos convivendo com alta tecnologia, jogando e criando jogos em computador. As crianças estão sempre brincando de futuro, com alguma coisa que poderão fazer com recursos melhores quando adultas. Por isso, não se pode brecar a criança, sob pena de quebrar-se um espaço de criação que fará falta ali adiante. As crianças devem ter a experiência do campinho, de brigar por causa do bolo na janela e, ao mesmo tempo, também devem ter liberdade para sonhar, para entrar em um caixote e ir para a Lua através da imaginação.
O senhor tem filhos e parentes trabalhando em seu estúdio. Alguns administradores consideram essa uma conduta arriscada. Como funciona isso no seu trabalho?
Não é arriscado. É trabalhoso. Tenho 10 dedos para tomar conta de 10 filhos. Talvez essa seja a cota ideal (risos). Você precisa ter alguns cuidados básicos. Por exemplo, um filho não pode ser chefe do outro; eles precisam trabalhar em áreas distintas, para que um não esbarre muito no trabalho do outro, mas não o suficiente para impedir que interajam. O pessoal que está na parte da criação musical interage com o teatro, assim como o teatro interage com o cinema e o desenho animado. Faço essa ginástica, e tudo acaba funcionando.
SUAVE SUBVERSÃO
"Nunca busquei (a contundência política do Quino, autor de Mafalda)", diz Mauricio de Sousa. "Fomos mais suaves", ele prossegue, citando como exemplo de provocações publicadas durante a ditadura militar uma história d’O Astronauta e a Turma da Mata (acima), sobre o Rei Leonino e sua obsessão pelo controle das comunicações (quadrinhos incluídos).
Também gostei muito da entrevista.
ResponderExcluirAbraço pra vc tbm.